O país do futuro chegou ao século XXI com os velhos problemas do passado. Caminhando para um quarto do novo século, o Brasil continua palco de escândalos de corrupção, grave instabilidade jurídica e conflitos entre os poderes constituídos, ora em desencontros abissais, ora em esbarrões cada vez mais ousados e perigosos. Tudo isso diante de um sistema político arcaico, cuja reforma não saiu do papel, e das velhas práticas fisiológicas que parecem cada vez mais normalizadas e aceitas pelo senso comum.
Nesses dias difíceis, em que a pandemia parece ser apenas mais um agravante, há um cenário tão tenebroso que até mesmo o mais pessimista dos brasileiros do século passado teria dificuldade de imaginar. No entanto, o Brasil não é o único país a enfrentar graves problemas políticos e sociais e nem tampouco essa ameaça de colapso civilizatório teve início agora. Os problemas atualmente pautados na agenda política mundial decorreram de fatos, ações e omissões com origem no passado, e boa parte deles pode ser atribuída ao crescimento populacional, às crises migratórias, à ausência de controle sobre a violência com a desordem crescente dela advinda e ao desmantelamento dos serviços públicos.
É fato que no final do século XVIII, na Inglaterra, quando a grande maioria da população se concentrava em áreas rurais, a Revolução Industrial deu início a um processo de migração do homem do campo para a cidade. Mas foi somente no século seguinte que essa movimentação de pessoas foi sentida com maior vigor. Nos Estados Unidos, a população urbana ultrapassou a rural na década de 1910.
No Brasil, esse fenômeno ocorreu entre 1960 e 1970, quando o êxodo se intensificou e o país passou a ter mais pessoas nas cidades do que na zona rural. Com os grandes centros urbanos lotados e com as novas necessidades de empregabilidade industrial, uma avalanche de matrículas se deu numa estrutura escolar insuficiente para acomodar tantas crianças e jovens. Além disso, esses alunos se depararam com um modelo de escola impróprio para um público tão heterogêneo, num momento em que os diplomas ainda representavam muito mais um símbolo de status para a classe dominante do que a certificação de preparo para a vida e para o efetivo exercício profissional.
Além de possuir baixa escolaridade, e por isso ocupar as vagas de empregos menores e mal remunerados, essa massa migratória se deparou com uma estrutura urbana imprópria para acolher novos cidadãos, o que não foi sentido apenas no sistema de educação, mas também nas áreas de saúde, habitação, transporte, segurança pública, dentre outras de menor impacto aparente. O serviço público que já não era bom para alguns ficaria ainda pior para todos.
No âmbito político, a ditadura militar e o sistema bipartidário limitavam as opções de participação popular e a repressão se encarregava de promover o distanciamento entre o cidadão e os movimentos reivindicatórios e sociais. E é justamente nesse cenário que talvez tenha havido uma das rupturas sociais mais graves e silenciosas já experimentadas no país.
Em face dos problemas socioeconômicos e das novas demandas coletivas surgidas em parte com o processo migratório, parcela significativa da sociedade partiu para soluções individualistas e segmentadas. Mesmo na classe média, aqueles que podiam matriculavam seus filhos em colégios particulares, buscavam por serviços médicos privados, adquiriam carro próprio relegando o transporte coletivo à massa mal remunerada. Do mesmo modo, essa sociedade civil desorganizada, ao se deparar com o agravamento da criminalidade, passará nos anos seguintes a frequentar lugares cada vez mais restritos como centros comerciais, parques de entretenimentos, clubes e shopping centers, abrindo mão das antigas praças, parques e locais públicos, muitos dos quais entregues à marginalidade.
Diante desse divórcio consensual entre o cidadão e o processo participativo por serviços públicos de melhor qualidade, é de se estranhar, por exemplo, a sobrevivência do Sistema Único de Saúde – SUS, resistindo por décadas ao desvio de verbas, aos superfaturamentos, às interferências políticas na nomeação de gestores, à falta de equipamentos, leitos, medicamentos e ao próprio descaso e ataques da população. Do mesmo modo, instituições como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), FIOCRUZ e BUTANTAN demonstram agora sua importância e resistência heroica no cumprimento de seus papéis institucionais, mesmo diante dos cortes de verbas para pesquisa, aparelhamento científico e tecnológico, resistindo às ingerências políticas e à falta de atenção das autoridades governamentais.
É evidente que muitos pecados foram e ainda continuam sendo cometidos no combate à pandemia, numa lista extensa que envolve a deficiência de comunicação entre as autoridades envolvidas, a falta de informações claras e adequadas à população sobre a COVID-19, a ausência de testagem ampla e confiável, o rastreamento e monitoração dos casos confirmados, a coleta e divulgação eficaz de dados epidemiológicos da COVID-19, até a postura pessoal dos governantes na adoção das medidas preventivas recomendadas pelas autoridades sanitárias. No entanto, tudo isso poderia estar ainda muito pior se parte significativa do serviço público não tivesse resistido bravamente à má gestão, ao descaso dos governantes e aos ataques de todos nós brasileiros, que durante anos criticamos os sistemas públicos, sem frequentá-los ativamente e sem lutar para melhorá-los. Por todas essas razões é justo reconhecer que a culpa também é nossa. Mas não é tarde para reverter essa postura, desde já festejando essa resistência: Viva o SUS! Viva a Ciência! E viva o Servidor Público dedicado!