Me deixa ficar longe por um pouco mais de tempo. Me liberta dessa obrigação de ter que saber sobre a falência do lugar onde vivo, do preço da gasolina, do feijão, do frango, ovos ou cebola. Preciso ficar uns dias sem ver a cara daquele lá, que acaba todo dia com a dignidade de todo mundo, menos de quem tem muito dinheiro, claro. Deixa eu me alienar em paz, quieta, calada no meio da minha própria bagunça. Espera, estou indo colocar as vendas novamente em meus olhos. Esquece que eu passei por aqui, pelo menos por um tempo e me deixa falar mal dos coach do instagram, dos filtros de fotos do instagram, das subcelebridades do instagram. Fico por aqui vendo vídeos de maquiagem, mesmo sem saber usar quase nada na cara, de receitas que eu salvei para nunca fazer e gatos e crianças fazendo gracinhas, sabendo que nunca terei nem um gatinho, nem outra criança, porque a que eu já tenho é suficiente para esta encarnação. Eu quero a alienação e uma falsa sensação de paz. É temporário, prometo.
Me dá um tempo disso tudo: eleição, campanha, ódio, perseguição, genocídio, invasão, projeto de morte, crise climática, vacina, não-vacinados. Vou abrir o twitter aqui rapidinho para ver a fofoca mais recente, os memes, uma briga por causa de brigadeiro, outra sobre sorvete, discussões que provavelmente só estão acontecendo ali naquela bolha. Qualquer coisa irrelevante que possa ocupar o meu tempo até chegar o dia seguinte. E tudo de novo. Não se importe se eu enjoar da cara das pessoas, da voz delas ou das histórias que elas contam.
Só me observa costurar o passado no presente, morrer de medo do futuro, enquanto tento furar o tédio, dominando essa fome incontrolável de miojo, leite condensado, pipoca, salgadinho e quantas besteiras mais eu puder comer. Me dá a liberdade de não pensar em flacidez, exercícios para a barriga, hipertensão, dor na coluna e ansiedade. Só por uns dias, não me cobre por passar o dia ouvindo as músicas que eu ouvia quando era criança, Belchior cantando: “a minha alucinação é suportar o dia a dia e meu delírio é a experiência com coisas reais”, porque tem algo de memória afetiva nisso e me deixa confortável quando escuto. Assisto a mais um reality show ruim na Netflix, desses que as pessoas casam em 90 dias ou dão ultimato aos seus companheiros, do tipo “ou casa, ou vaza”, vou viver a nostalgia das comédias românticas dos anos 2000 ou ler um livro que não me faça parar para refletir a cada página ou trecho profundo.
Me deixa mergulhar na superficialidade das coisas, me aninhar na cama bagunçada, sentir pulsar devagarzinho a vida, escrever coisas medianas, roer as unhas, deixar o esmalte descascando, me ocupar regando as plantas da sala para esperar o sol voltar. Eu quero apenas um pouco mais de tempo para não precisar ser mais uma pessoa que tem opinião sobre tudo e que precisa tomar decisões importantes e fazer escolhas urgentes.
Me deixa. Só. Ficar. De bobeira.
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