Os pingos caíam e batiam insistentemente em alguma coisa lá fora. Eu acho que eram bacias, ou latas, talvez. A sonolência não me deixava pensar muito, nem saber do que se tratava aquele objeto que tomava banho de chuva. Lembro do dia já claro e a julgar pelos pequenos barulhos que lembravam a dinâmica cotidiana de uma casa, a manhã já avançava e meu estômago não parava de me lembrar de que eu não comia há pelo menos quinze horas.
Com a cabeça girando, a língua pesada como se estivesse presa no céu da boca e os lábios ressecados e grudados, tentei levantar, sem entender o que estava acontecendo e muito menos onde eu estava. Além daquele barulho de chuva martelando dentro do meu cérebro, ondas do mar vinham e voltavam, como se batessem em alguma rebentação, mas eu estava confusa demais para saber se era aquilo mesmo que estava acontecendo. Os lençóis que me cobriam tinham cheiro de maresia e avistei à minha frente dois quadrinhos com temática náutica, combinando entre si, mesclando listras brancas com azul escuro, molduras em madeira clara e pinturas de âncoras e cordinhas com nós de marinheiro. Uma decoração perfeita para o clima praiano do quarto. Mesmo com dificuldade de abrir os olhos, com um aberto e outro fechado, tentando amenizar o zumbido que acompanhava a dor de cabeça, tentei perceber tudo o que estava ao meu redor para encontrar algo que desse alguma pista de onde eu poderia estar e de como fui parar ali.
Encarei uma porta de madeira entreaberta do lado esquerdo da cama e suspeitei que pudesse ser o banheiro. Devagar, com a sensação de ter alfinetes no corpo inteiro e mal conseguindo pisar no chão, me aproximei e era mesmo o que eu estava pensando, era o banheiro ali. Procurei um espelho, pois precisava descobrir a minha verdadeira situação e achei curioso não ter nenhum. Nunca vi um banheiro sem espelho, pensei. Assim como o quarto, ele era todo enfeitado com barcos, âncoras, conchas do mar e listras. A cortina do box era feita de um plástico grosso, fosco e com estampa de estrelas do mar. A chuva parecia diminuir lá fora e eu consegui ver através de uma janelinha que ficava na parte acima do chuveiro que o céu já estava quase sem nuvem. O sol já parecia sorrir. Eu queria tomar banho, mas tive medo de mexer em qualquer coisa daquele lugar que não conhecia um centímetro sequer. As coisas estavam turvas, eu enxergava tudo esfumaçado. Apesar do tempo que parecia se abrir em um lá fora até então desconhecido, eu era toda neblina. Embora desorientada, não sentia medo.
Lavei o rosto, fiz um bochecho e prendi o cabelo com um coque. Era a única ação possível naquele emaranhado de nós que impediam os meus dedos de passarem por eles. Não encontrei a toalha e, ainda tonta, voltei ao quarto e enxuguei o rosto com o cobertor. Nada parecia fazer sentido ali naquele lugar e eu me perguntava o tempo todo como tinha ido parar num quarto desconhecido, com uma sensação esquisita como se fosse de ressaca, com todos os meus músculos doendo de uma vez só. Ainda esfregando o rosto com o lençol, como se aquela ação pudesse me ajudar a desvendar tudo o que estava me confundindo, fui me sentando na cama, pouco a pouco encostando nos travesseiros, como em câmera lenta. Olhei mais uma vez para a janela, e, embora ainda chovesse levinho, eu não conseguia mais escutar o barulho das ondas do mar e estava me sentindo pesada demais para ir até a janela. O mar não poderia ter sumido em questão de minutos, claro. Semicerrei os olhos para diminuir a miopia e ainda assim era quase impossível adivinhar o que existia lá fora, ao mesmo tempo que ouvir o barulho da chuva me tranquilizava de um jeito inexplicável. Esqueci um pouco do mar já que não conseguia mais ouvi-lo e me deixei adormecer por algum tempo. Não tinha condição alguma de saber quanto tempo havia se passado, estava fraca demais para reagir a qualquer coisa que me inquietasse naquele momento. O cansaço era maior do que a fome que era do tamanho do medo que eu estava sentindo ali, num lugar desconhecido, em confusão mental e completamente sozinha.
Já estava escurecendo lá fora quando abri os meus olhos novamente. Levantei assustada e ofegante. Como era possível que alguém tivesse entrado no quarto e mudado tudo o que existia ali? Não vi mais os quadros na parede, os lençóis não cheiravam mais à maresia e por mais que eu revirasse cada parte do tecido, só sentia um odor suave de alvejante. Olhei ao redor e não havia nada da decoração de antes. Nada de quadrinho com desenhos náuticos, nem de listras azuis, nenhum barulho de mar. O clima se modificou totalmente dentro do quarto e lá fora também, não chovia mais e o silêncio, que ocupava todos os espaços possíveis ali, era maior do que tudo o que eu conseguia enxergar pela janela, que agora tinha grades de ferro no lugar da vista da rebentação que pensei ter visto mais cedo. Aquele quarto estava estéril, tácito, era como se eu estivesse completamente sozinha no mundo inteiro, mas não sentia mais medo. Apesar da chuva ter cessado, eu ainda sentia um frio, que ressecava minha garganta e os meus lábios, e precisei tomar um pouco da água que estava na mesinha ao lado da minha cama, que agora era branca, fria, de ferro.
Com dificuldade de me locomover e ainda atordoada, andei cambaleante até a porta branca com a tinta descascando que ficava de frente para a cama, tentei abrir mas estava trancada. Não forcei o trinco, nem me sentia forte o suficiente para gritar por alguém. Meu corpo não doía mais, mas minha cabeça ainda latejava um pouco. Menos que antes, pelo menos. Encostada na porta, olhei de um lado para outro, avistando do lado direito, em uma brecha na porta do banheiro, azulejos azul claro com branco e uma iluminação fraca, quase se apagando, e do outro lado, a janela que me mostrava a imagem do céu cinza, talvez de um fim de tarde nublado. Tudo ali parecia absolutamente familiar e eu já não sentia medo. Apesar de não perceber mais nada do clima da praia de horas antes, eu poderia sentir um oceano inteiro dentro de mim.
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