Abri meu baú e comecei a retirar as velharias que estavam lá: o LP empenado do Vandré, a faixa empoeirada das DIRETAS JÁ, a folha de papel amarrotada com a letra escrita à mão da música APESAR DE VOCÊ do Chico, velhos recortes de jornal com matérias sobre a luta das liberdades civis e alguns livros mofados que talvez ideologicamente estejam no mesmo estado de conservação.
Achei meu tênis velho de guerra, a calça jeans riscada com caneta Bic, a camisa feita com serigrafia barata estampada com um trecho do ANALFABETO POLÍTICO do Bertoldo Brecht, um apito e uma frigideira velha, antigos instrumentos que compunham meu aparato de protestos em passeatas e comícios.
Dobrada num saco plástico transparente encontrei minha bandeira do Brasil, comprada nos anos 80, muito usada nos jogos da seleção e nas passeatas, sempre amarrada nas costas como uma capa de super-herói. Bem desbotada, ela já não tem o vigor das cores marcantes da nossa pátria, mas ainda assim guarda bem toda a simbologia das lutas por dias melhores.
Mexer nesse baú me fez lembrar que já estivemos unidos por um objetivo comum. Quando fomos às ruas pelas Diretas Já, a maior parte de nós não pertencia a partidos políticos, movimentos sindicais, estudantis ou entidades civis organizadas. Éramos apenas o povo nas ruas em busca de nossos direitos mais básicos.
Retomamos a duras penas o direito de voto para presidente da República, depois de 21 anos de ditadura militar (1964-1985), quando um governo civil, por intermédio de eleição indireta, deu início à redemocratização do país. Sob a égide de uma nova Constituição, promulgada no ano de 1988, o direito de livre escolha da população foi restabelecido e o povo pôde enfim eleger de forma direta seu presidente em 1989.
Mas uma jovem democracia tem lá os seus percalços e nesses 32 anos de vida, ela tem sido constantemente colocada à prova, especialmente nos últimos meses. Nosso passado mais inglório insiste em voltar sob a forma de ameaças descabidas, declarações desmedidas, frases truculentas, palavrões desenfreados e em ataques explosivos e aloprados, numa verborragia capaz de causar soluços. É o autoritarismo tentando substituir o diálogo.
Uma minoria míope e falastrona, mas nem por isso menos perigosa, vem atentando contra o coração do sistema democrático, pedindo intervenção militar, fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, pautas não apenas antidemocráticas, mas inconstitucionais e, portanto, ilegais.
Mais recentemente, sob o pretexto da ocorrência de supostas fraudes, surgem ameaças ao sistema eleitoral brasileiro, colocando em risco nossa livre escolha, em mais um atentado contra o estado democrático de direito. Há quem ache correto condicionar a realização de eleições a adoção do voto impresso auditável, no entanto elas estão lastreadas na Constituição Federal e sua realização é um pressuposto do regime democrático. Não vale virar a mesa.
Vincular a realização das eleições de 2022 ao voto impresso ou a qualquer outra condição não positivada é atentar contra a democracia. É preciso lembrar que há uma Proposta de Emenda Constitucional – PEC em tramitação na Câmara dos Deputados e sua aprovação é o caminho capaz de promover as mudanças desejadas por alguns, mas se ao contrário as mudanças forem rejeitadas, as eleições serão realizadas do mesmo jeito e seu resultado deverá ser respeitado por todos. Não tem essa de só quero se for do meu jeito.
Aos esquecidos, é bom lembrar que os derrotados nas últimas eleições presidenciais perderam no voto e não alegaram fraude. Do mesmo modo, a família Bolsonaro, por exemplo, foi eleita pelo menos 20 vezes pelo sistema eleitoral brasileiro, boa parte delas em certames com o uso de urnas eletrônicas. Até aqui, todos eles tomaram posse, sem que qualquer um tenha questionado a legitimidade de suas eleições. Portanto, quem foi eleito pelo voto democrático, livre e direto em diversas ocasiões não deveria vilipendiar o caminho trilhado, sob pena de manchar sua própria reputação, atraindo para si a suspeição que agora lança sobre os outros.
A boa-fé se presume, a má-fé se prova. Se há fraude no sistema eleitoral brasileiro, ela precisa ser provada, caso contrário deve ser considerada como esperneio irresponsável, mera gritaria e tentativa vil de tumultuar o processo. Por precaução, vou deixar meu baú aberto.