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(…) Finalmente o almoço começa a ser servido. Dona Marga vem trazendo arroz,
depois mais farofa e vinagrete, pratos limpos e mais talheres. Ela vem, volta, traz copos e
avisa a todos que está na hora de comer. O marido continua conversando com os filhos e o
genro, demora um pouco para atender ao chamado da mulher e ela precisa repeti-lo. Ana
oferece ajuda, arruma a mesa das crianças, grita para os filhos saírem da piscina e espera
Clarissa fazer o mesmo, mas como ela está distraída mexendo no celular e discutindo com
Marcinho, a cunhada pacientemente chama os três filhos e todos os sobrinhos de
Marquinhos. “Mãe, tô com frio”, “não quero sair agora, tia, não tô com fome”, “saia do meu
lugar, eu vi essa cadeira primeiro”. Aos poucos e depois de muita contestação, cada um vai
se ajeitando e se sentando em seus lugares. Seguem brigando, chorando ou reclamando.
Tudo normal entre os pequenos com os dedos enrugados, depois de tantas horas na
piscina. Na mesa dos adultos todos já estão sentados, e Milena distribui os pratos e
talheres. Ela está calada e, como de costume, gosta de observar o comportamento
daqueles que geralmente a fazem se sentir estranha dentro dessa casa que viveu durante
dezenove anos, desde que nasceu.
Alguém derruba um garfo, “me passa o arroz, por favor”, faltou o pegador de salada,
“cadê a Coca-cola?”, e segue o ritual do almoço em família com todo mundo falando alto e
ao mesmo tempo, mastigando e reclamando que alguma coisa está sem sal ou que a carne
passou do ponto. Seu Nero centraliza os assuntos, comenta a política nacional, critica o
filho gay do vizinho e fala mal da filha mais nova de seu irmão. “Aquela ali adora explorar o
pai. Agora inventou uma viagem para Buenos Aires com o marido, mas só vive pedindo
dinheiro para o combustível, parcela do carro e esses dias estava lamentando que o aluguel
aumentou e não sabia como iria pagar, nunca vi tão encostada”, dona Marga não perde a
oportunidade de concordar com o marido e atualizar os filhos sobre as novidades dos outros
núcleos familiares. A música continua tocando e apesar de todos reclamarem do barulho,
ninguém quer levantar para abaixar ou desligar o som.
Milena se sente cada vez menor a cada raro encontro. Seu Nero pergunta sobre o
doutorado, dá pouca atenção às suas respostas, se volta para os outros filhos e quer saber
que horas começa o futebol. “Querem sobremesa? Vou buscar o pudim”. Dona Marga mal
termina seu próprio almoço e já levanta para buscá-lo na geladeira da cozinha. A filha
observa, lamentando a sobrecarga da mãe, que não admite estar cansada e aparenta muita
disposição para atender aos apelos de todos, especialmente do marido que está sempre
pedindo algo. “Nada muda por aqui”, e observando distraidamente o vai e vem de
conversas, as risadas inocentes dos sobrinhos e o jeito característico que cada pessoa ao
redor daquela mesa se comporta, Mila resgata os sentimentos que justificam seu frequente
afastamento.
Ana continua atendendo aos chamados insistentes dos meninos que querem mais
refrigerante ou não querem mais comer ou estão brigando por alguma bobagem infantil,
sempre interrompendo seu próprio almoço, enquanto Marquinhos, já alimentado e satisfeito,
segue conversando com o cunhado e Marcinho. “Não tem condições deste relógio ter sido
tão barato assim, só se você comprou ele roubado”, “Tô dizendo, rapaz, não é roubado não.
O cara estava quebrado e precisava de dinheiro”, “Marcinho, meu financiamento tá
demorando demais pra aprovar, chegue junto e me ajude. Esse meu carro já tá dando
problema e eu tô querendo aquele novinho faz tempo. Ele já deveria estar na minha
garagem”.
Mila lamenta não ser mais próxima da jovem cunhada, Ana. “Essa moça
merecia ser mais feliz, tão novinha e distante de tudo. Vou ver se levo ela e as crianças pra
dar uma volta na praia, tomar um sorvete, andar de bicicleta, qualquer coisa para ela sair de
casa com os meninos”, e olha com um certo desprezo para a indiferente Clarissa, a outra
cunhada. Percebe que Marcinho, mesmo conversando do outro lado da mesa, não para de
olhar incomodado para a mulher, que não solta o celular. A cada risadinha discreta, o
marido estica ainda mais o pescoço, sem conseguir disfarçar a curiosidade e o ciúme.
“Daqui a pouco ele chega perto de Clarissa, só pra saber com quem ela está conversando.
Tão previsível esse meu irmão”, e levanta, recolhendo os pratos sujos, enquanto todos os
outros permanecem tagarelando em seus lugares, com exceção de seu Nero, que já está
reclamando que não encontra o controle da televisão, “O futebol já começou e vocês não
estão nem aí pra isso. Desde cedo que eu procuro o controle”.
Dona Marga traz o pudim e esquece a colher, espera que alguém vá buscar, mas
como sempre, está todo mundo muito ocupado e entretido, sendo servido pela matriarca.
“Deixe, mãe, tô levando esses pratos aqui para a pia e já trago a colher”, e Mila sai para a
cozinha, inconformada com a falta de iniciativa de quem passou o dia comendo e bebendo,
sem muita preocupação. “Acho que já passei tempo demais aqui hoje”, e enquanto lava a
louça, a mãe vem chegando para ver se o controle da televisão não ficou esquecido pela
sala. Milena quer saber da reforma do banheiro, pergunta sobre a consulta da mãe no
cardiologista e começa a falar sobre a defesa da sua tese que ocorrerá em poucos dias,
mas dona Marga parece muito ocupada e apressada para agradar seu Nero. Sem perceber,
quase deixa a filha falando sozinha, como já fez tantas outras vezes. Milena enxuga as
mãos no pano de prato, jogando-o com raiva em cima do escorredor e dos pratos que foram
lavados e observa a família pela janela acima da pia da cozinha. Balança a cabeça
negativamente, respira fundo e esboça um sorriso triste por saber o quanto é difícil se sentir
à vontade neste lugar que já lhe fez tão feliz. Olha para o celular, quer saber que horas são.
“Me espera, estou chegando”. Pegando a bolsa, sem se despedir e se sentindo
aliviada, ela sai de casa andando em direção ao carro, seu velho companheiro de estrada,
desde os tempos da graduação na universidade. Milena está animada novamente, sabe que
vai conseguir chegar a tempo para a sessão do cinema que tinha combinado com a
namorada e sobreviveu a mais um encontro da família, dessa vez sem discussões e pouco
interesse pela vida do seu pessoal. Enquanto acelera o carro, olha pelo retrovisor,
observando a casa verde de muro com pedras se distanciando, e sorri relaxada. “Quatro
meses para o Natal, tenho tempo pra me recuperar. Ainda bem”.