Em algum lugar desse mundo, neste exato momento, tem alguém pensando “minha vida não está acontecendo”. Tem também alguém deitado no meio da sala, num apartamento quase vazio, depois de uma separação que doeu, ouvindo Rita Lee tocar na vitrola “Menino bonito” e pensando em tudo o que pode ser agora que não tem mais o relacionamento que parecia ser tão certo e para sempre “depois ir embora… ah ah! Seeem di-zer o porquê”, diz o pedaço da música. Em outro lugar, numa cidadezinha do interior, alguém está chorando a morte da avó, seguindo o cortejo das velhinhas da igreja que a avó frequentava e lembrando de todas as férias, dos natais e das comidas que só tinham naquela casa, que agora ficará vazia e silenciosa, repleta das fotos de família que enfeitam aquelas paredes.
Ali na esquina, dois desconhecidos se cruzam sem fazer ideia de que um acabou de ser contratado e está pensando em preparar um jantar para comemorar com os pais, enquanto o outro segue concentrado em seus próprios pensamentos, cheio de dúvidas se deve mesmo suportar mais um mês de um trabalho que o deixa triste, limitado, diariamente. Uma criança da quinta série está sentada, neste minuto, tentando resolver uma questão de raiz quadrada, porque esse assunto vai cair na prova amanhã, enquanto sua mãe está fazendo o almoço, contando o tempo de apagar o fogo da panela de pressão que já começou a chiar e o cheiro de feijão incensou a casa inteira, deixando todo mundo com fome antes da hora.
Você se cansa – e eu também! – reclama, pisa no chiclete na rua, perde o ônibus, perde dinheiro, deixa para fazer o imposto de renda de última hora, adia a regularização do título de eleitor, quebra um copo. Mas também cuida do jardim e arranca os matinhos que deixam as plantas com o aspecto de abandonadas, ouve as primeiras palavras do seu bebê ou, o primeiro dentinho de leite, daquele sobrinho que sempre pede para a mãe fazer uma chamada de vídeo com você, caiu e ele te ligou para contar e mostrar a janelinha. Recebe ajuda de um vizinho para abrir o portão, enquanto segura as sacolas pesadas do supermercado, encontra vinte reais no bolso de uma bermuda que estava esquecida no guarda-roupa, recebe uma mensagem da melhor amiga, avisando que não deu nada no exame preocupante dela, que havia te deixado triste por dias, enquanto aguardava por notícias, bebe uma taça de vinho no final do dia. Solta risadas gostosas e sinceras com um vídeo de meme tão bobo que depois de um tempo você se pergunta: “por que eu estava rindo mesmo?”. Essas coisas pequenas acontecem nos entremeios das coisas importantes e inesquecíveis.
A vida é o que está acontecendo, minuto a minuto. Ela é mesmo muito cheia de clichês e de rotinas, e tem sempre uma música de fundo para contextualizar as coisas e dar um ar de cena de filme para quem ousa imaginar as tais cenas. Ela acontece nos pequenos momentos. Naqueles espaços de tempo em que a gente esquece de prestar atenção porque o corriqueiro vai e vem tantas vezes que até já perdeu a graça da novidade. A rotina é quase sempre sem graça, concordo, mas ela tem suas belezas se a gente quiser perceber. A vida está acontecendo quando a gente sente o cheiro do frango assando no forno ou o cheiro do desinfetante de lavanda que fica no ar, quando a gente termina de fazer aquela faxina e, mesmo cansado, tem a impressão de que todas as pendências foram reparadas, porque casa limpa deixa mesmo essa sensação de que está tudo resolvido. Tem amor em cada detalhe e o amor é como uma cama que teve os lençóis trocados por outros, limpos e cheirosos, e a gente deita quando tudo parece desacelerar.
Tudo costuma acontecer nos menores intervalos de tempo, mesmo que o imperfeito nos engane e que nos faça acreditar que só se vive a partir das grandes epifanias. A gente se prepara sempre para uma tsunami, mas o bom mesmo é ver que no final tudo não passa de uma marolinha.
Não deixe o mar te engolir.
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