“Há tanta vida lá fora”, eu pensei, enquanto olhava pela janela o mundo cair em forma de chuva. Ela despenca sem trégua, escorre pelos muros e entra pelas paredes, molhando cada metro quadrado de chão na escada, na minha sala e nos espaços metafóricos que eu abri nas folhas do caderno. O inverno daqui de dentro costuma ser mais intenso do que esse das chuvas e temporais lá de fora, mas eles estão em constante sintonia, fazendo sempre surgir em mim uma necessidade de sol, de calor e de alguns momentos, ainda que poucos, de disposição. Não tenho intenção de ser melancólica aqui neste texto, mas expor alguns dos meus dramas constantes, mesmo em pequenas doses, acaba sendo inevitável.
Me deixei cair num mergulho profundo com a minha escrita nos últimos dias. Eu ainda tenho coisas bonitas para falar? É o que ando me perguntando. Geralmente a gente está sempre escrevendo as mesmas coisas, porém de formas diferentes, e tudo o que eu quero dizer aqui é que foi quase um processo terapêutico, essa jornada de autodescoberta na reconstrução do que eu nem mesmo sabia mais o que poderia fazer. Isso porque, dias atrás, fui convidada a participar de um ciclo de entrevistas onde eu e Nath Bezerra passaríamos uma semana trocando mensagens, textos, ideias e dores, como se fossem cartas, coisa que há muito eu não fazia. Escrever cartas e responder a elas. A voz de veludo da Nath, me explicando por áudio como seriam os dias seguintes naqueles esboços de subjetividade, me convenceu de imediato. Eu sabia que precisava daquilo, sem nem saber para onde aquelas perguntas me levariam. Falar sobre o que escrevo ou de como eu escrevo, geralmente é fácil, mas invariavelmente me deixa em reflexão profunda sobre tudo o que eu falo, ou quero falar, ou aonde estou indo. E se eu deixar de fazer isso, o que me sobra? Eu nunca sei a resposta para esses pensamentos, e sei que não deveria mesmo tê-la. Escrever é como entrar em um trem sem saber o destino, e só se convencer a descer desse trem quando descobrir algum sentido para tudo o que está posto.
Na nossa conversa, alimentada ao longo de sete dias que passaram correndo como corre o último minuto da vida, enquanto eu falava de poesia e lançava as minhas histórias, o tempo inteiro tentando entender cada palavra que era dita e escrita e refeita, eu bebia de “Jóquei”, da Matilde Campilho e assistia ao seu vídeo-poema do meu mais novo poema preferido, Fevereiro, o que me fez parar tantas vezes para pensar e querer gritar para todo mundo: “De que lado você está, eu não me importo! De que garfo você come, de que copo você bebe, que posto certo você escolhe, qual é seu orixá, seu partido, sua altura, de qual de suas cicatrizes cuida, que pássaro você prefere, quem é seu pai, qual é seu samba, Pinot noir ou Chardonay, que protetor você usa, qual é sua pele, seu perfume, qual político, quantos amores você sonha, em que Fernando, em que Ofélia, em que cinema, em que bandeira, em que cabelo você mora, qual dos túneis de Copacabana. Rezo para seus santos quando atravessar”.
Todos os dias eu quase chego à conclusão de que não há nada que eu queira falar que já não tenha sido dito por uma centena de outras pessoas. Ou por mim mesma, até. Ainda assim, eu continuo insistindo que talvez seja possível sair da minha mão canhota uma palavra que seja, que venha alterar todo o sentido de algo que necessita ser colocado de novo no lugar. Quando eu divido com você a minha trajetória não-linear nesse campo da criação, eu espero que você possa me utilizar como metáfora para todas as outras partes da sua vida que nos diferem. As nossas miudezas se esbarram de alguma forma e é nesse momento que eu entendo que a vida da gente tem as mesmas intencionalidades, cada uma a seu modo.
Como é que você lida com as coisas inacabadas, eu te pergunto. Deixa tudo largado num canto, como uma mochila velha e resolve nunca mais enfrentar aquilo, ou desistir não é uma opção? Saramago disse que “é necessário sair da ilha para ver a ilha. Não nos vemos se não saímos de nós”. Quando eu decido sair da ilha e mesmo assim não consigo me enxergar, a vontade louca que dá é de pegar o meu barquinho, tomar o caminho de volta, e não sair dessa ilha nunca mais, só contemplando a minha solidão.
Aqui, a cada texto publicado, você acompanha os mais diversos processos de subidas e descidas de uma escritora em um constante estado de formação. Eu não poderia decifrar para você a minha poesia, porque poesia é ciência que não se explica, e eu não saberia como te fazer sentir com as palavras faladas, mais do que se sente o suficiente com as que são escritas. Apenas as guarde, quando puder, que logo você entenderá o que eu estou falando. Que te faça arrepiar cada palmo de pele, pressentindo os silêncios, descobrindo os sentidos. Me escuta, é importante que você compreenda junto comigo: minha fé é poética e ela sempre me traz de volta para mim.
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