Secando uma lágrima que cai devagar desenhando um mapa em meu rosto, sentada aqui na varanda, na brisa leve deste fim de tarde que balança as minhas plantas e meus cabelos, e ouvindo um monte de passarinho pra lá e pra cá. Acho que aqui é o melhor lugar para escrever para alguém que nunca soube da minha existência, mas que desde que me vejo como um ser pensante neste mundo, sempre residiu em minhas ações mais espontâneas. Eu não estou preparada para perder meus ídolos. Escrevi isso para Gal, seis meses atrás, sem fazer ideia de que estaria escrevendo para você agora, querida Rita. Que ironia te ver partir para fazer barulho do outro lado da vida, no mesmo dia que Gal, no último novembro. Me pergunto se vocês já estão fazendo música nas nuvens, rindo da cara dos caretas, dos chatos e das santinhas, com a sutileza de um furacão, debochando quando viram que toda a profecia sobre o dia de sua morte se realizou do jeitinho que você havia imaginado. Como é ser Rita Lee? Um dia, você disse que gostava de si mesma, mas que não era muito confortável ser você e, sinceramente, eu custo a acreditar nisso, porque conheço pouquíssimas pessoas que seguram suas próprias vidas nas mãos como você segurou a sua. E eu fico aqui, sem saber se escrevo sobre sua música, sua explosão como mulher, suas ironias, sua paixão arrebatadora pela liberdade ou tudo junto e liquidificado. Você cantava, e não apenas isso, você respirava a liberdade, defendia a loucura, a autenticidade, acolhia as inúmeras possibilidades de viver neste mundo por tantas vezes asfixiante. Não se dobrou para aqueles minúsculos censores e ditadores, foi no contrafluxo do conservadorismo, fez revolução quando não se envergonhou em cantar e falar de sexo, dos nossos desejos, rompendo com essa ideia mala de que mulher precisava ser certinha e silenciosa, mandou o preconceito à merda. Sua insubmissão é a fina flor de toda a história que você apresentou ao mundo. Hoje, a internet passou o dia inteiro sendo unânime a seu respeito. Um culto sem fronteiras. Rita, minha feiticeira, eu nunca tive dúvidas da sua universalidade. O twitter, aquela rede lá dos fofoqueiros, que você tanto curtia quando aquilo ali era só mato e uns gatos pingados, esteve tão integrado hoje, que parecia uma grande celebração ao amor que tanta gente sente por você. Eu vi as fotos mais lindas, inúmeros vídeos com você fazendo aquilo que sempre nutriu sua alma: cantando e compartilhando essa existência indiscutivelmente autêntica com o mundo. Hoje eu te assisti conversando com Fernanda Young e Marília Gabriela. Com a Hebe! Como vocês eram fantásticas juntas e que saudade eu sinto. Te vi cantando com Bethânia e Gil. Você foi Raul, Ney, Milton, Beatles, Elis, Gal e tantos outros, e eu nunca saberei como todos vocês juntos conseguiram transformar o nosso país nessa riqueza musical impressionante, mudando a nossa estrutura cultural de um jeito tão singular, que não nos imaginamos sem a força da sua presença; mas também não me interessa saber, eu quero apenas sentir todos e cada um. Os rebeldes querem deitar em seu colo, ouvir o som da sua risada, gargalhar com sua ironia fina, subverter a ordem com você pelo menos mais uma vez. Te ver indo embora embrulha minhas memórias, faz nevoeiro na minha história, provoca o meu choro baixinho. Dizer adeus é a antítese de todas as palavras e sons que você deixou aqui pra gente. Alô, alô marciano, cuida bem dela, porque você não imagina a loucura que está aqui por estas bandas. Desculpe o auê, Rita, por você vou roubar os anéis de saturno, posso? Uma vez, no fim da minha adolescência, eu tive um blog. Queria escrever na internet, falar sobre as mulheres, nossos anseios, nossa valentia e desejos. “É cor de rosa choque” foi o nome que escolhi para aquela minha primeira experiência com a escrita, então, Rita, para além de toda a sua influência na minha personalidade, você esteve diretamente ligada aos meus sonhos profissionais e à minha existência como uma mulher que nunca gostou de ser silenciada. Eu quis falar como você, andar e me vestir como você, eu desejava usar seu batom vermelho e ter suas unhas de feiticeira. Aprendi com você a ligar o foda-se e mandar à merda todas as pessoas que me deixaram desconfortável ou me fizeram infeliz, especialmente pequenos homens controladores e caretas, aprendi a não ter vergonha de falar palavrão, porque eu achava muito genuíno não precisar controlar o meu vocabulário só para parecer obediente e bem comportada. Confesso que gostaria de ter sido mais transgressora como você sempre foi, mas ainda assim, dentro de minhas limitações, consegui validar um tanto de sentimentos que se misturaram dentro de mim em cada fase do meu amadurecimento. Você me influenciou, inspirou minhas amigas, as amigas das amigas, e até quem não conseguia se ver na sua imensa personalidade, no fundo sabia que você seria a porta-voz de cada grito de liberdade que gostaríamos de fazer ressoar. Nós vimos em você a beleza de escolher ter uma vida menos banal e que sorte a nossa de você não se contentar com a perfeição que esperam de nós. Toda mulher quer ser amada e feliz, toda mulher foi um pouco Rita Lee. Todas as mulheres do mundo te reverenciam, iluminando o caminho para que você passe flutuando com seu tal de Roque Enrow. Cada fortaleza da nossa cultura que se vai deixa todo mundo um pouquinho órfão, e parece que ultimamente o tempo está andando acelerado demais, a vida como conhecemos está indo com ele, e, Rita, preciso me desculpar por discordar respeitosamente da epígrafe de sua biografia. Você foi, sim, um bom exemplo pra gente, e era gente boa pra caralho. E, sim, todos concordamos: você fez mesmo um monte de gente feliz, porque “O amor sobrevive. E seremos talvez amor e morte ao mesmo tempo”, Hilda Hilst mandou avisar.
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