*”Onde nasce, morte? (…) Te alimentavas de amêndoas negras? Havia águas? (…) Se queriam, tocavas? E sendo criança não tocava em tudo e instantaneamente se fazia insipidez e nada? E velhíssima agora conhecendo todos os tatos, agonia, terror e pasmo, saciada, por que não partes?”
Enquanto me arrumava para trabalhar, olhei para o meu filho dormindo na minha cama – ele corre pra lá durante a madrugada e sempre me deixa espremida entre aquele corpo em desenvolvimento de um garoto de treze anos e meu marido – e senti uma fragilidade na minha fé na humanidade.
É fácil pensar que o inferno está reservado para os maiores horrores que o mundo já produziu. Massacres, guerras, catástrofes provocadas pela ganância e ambição de pequenos grupos que dominam a imensa maioria de pobres sobreviventes que só queriam seguir o seu caminho da vida em paz.
É quando a gente acompanha em tempo real uma destruição massiva como o que está acontecendo entre Israel e Palestina, que somos lembrados de que o inferno não se limita a um lugar distante, mas, muitas vezes, está bem do nosso lado, ou, no máximo, do outro lado de uma tela.
Viver em um mundo em guerra não é novidade para ninguém. Nesse labirinto de ódio, onde as fronteiras se confundem com as cicatrizes da história, as vítimas mais inocentes são aquelas quase sempre deixadas de lado. São as crianças que sofrem as consequências mais cruéis dessa terrível disputa. Um olhar doloroso e atento para o conflito revela que o inferno são, de fato, os outros. No entanto, são também essas crianças que podem ser a luz no fim desse túnel sombrio.
No meio das disputas políticas mais insanas e irracionais, é o mundo das crianças que é destruído por completo. O inferno são os outros, por que, por ambição, poder ou ódio, todo o futuro desmorona junto com os prédios em chamas. Não existem metáforas que possam falar em nome de uma guerra.
Não consegui ainda digerir o vídeo de uma criança palestina sendo acalmada por um médico. O menininho está apavorado. Seus olhos esgazeados não piscam. Aquela criança assustada, coberta de poeira, que não consegue piscar os olhos enormes, negros e arredondados, não fala nada. Está em pânico, encolhido no canto da parede.
No vídeo, não aparece a mãe, não vemos o pai. Estão ali: o medo, a criança e um médico tentando acalmá-la. Eu não entendo o que aquele médico fala, e de repente o menininho desaba no choro mais doído que eu já vi na minha vida. Alguém que teve sua vida roubada e não tem nem cinco anos de idade. Desmoronei junto. O sangue é real, o choro é sempre uma língua universal. A dor das crianças é a do mundo.
O que é que resta? A poeira da identidade, do destino, as partes mais importantes de um povo são soterradas e tudo o que sobra é a melancolia das ausências. Li por aí que “quem fabrica armas precisa fabricar inimigos”, mas que ousadia é essa de escolher inimigos que nunca quiseram entrar nessa conta? Quem vocês pensam que são, senhores das armas?
Eu quero me encontrar melhor nesse mundo que ultimamente só faz questão de me deixar mais apavorada, confusa e desidratada. Nada do que falo faz sentido, não há mais nada importante. É como se as frases não se conectassem entre si, como se eu tivesse fragmentando as ideias, a minha sanidade, minhas vontades. Está tudo se despedaçando e partindo.
Eu quero que o meu filho viva em um mundo onde a gente não precise assistir a crianças apavoradas, cobertas de pó e pólvora. Enquanto isso, guardo as palavras de Gil “sabe, gente, é tanta coisa pra gente saber. É tanta coisa que eu fico sem jeito. Sou eu sozinho e esse nó no peito, já desfeito em lágrimas que eu luto pra esconder”.
Se o inferno são os outros, neste e nos demais conflitos complexos espalhados pelo mundo, é nossa responsabilidade ser a força que transforma o pesadelo em esperança, lágrimas em sorrisos, e crianças em embaixadores da paz. Que o inferno fique apenas nas mãos daqueles que promovem o ódio deliberadamente apenas para justificar seus superpoderes acima de qualquer coisa. Eu não compactuo com a morte.
*poema “Onde nasce a morte” de ana cristina cesar (ou seria de Hilda Hilst? Confirmo na próxima edição)
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