“Professora, qual é a diferença dos porquês?”. Eu levei alguns segundos para entender que aquela criança estava falando comigo. “Q-quê? É comigo que você tá falando?”, “é, tia, ele quer saber a regra dos porquês”, disse outro aluno. Eu congelei. No meu pensamento, meio em pânico, meio surpresa, eu tentava buscar a resposta o mais rápido possível, enquanto o professor efetivo me chamava para ir ao quadro explicar os tais “porquês” que o menino queria saber. Como assim “professora”, se eu nem me sinto ainda no direito de ocupar este lugar? Eu estudo para ser uma, estou no estágio acompanhando outros professores em sala de aula e ali, toda tímida e um pouco sem graça, observava o professor daquele horário, ainda me procurando naquela posição, quando de súbito alguém me chama de professora e eu acabo me surpreendendo.
Eu ensinava aos meus primos e meu irmão quando éramos crianças, porque via minha mãe pra lá e pra cá com cadernetas e histórias quase infinitas dos seus alunos da educação infantil, e dizia que queria ser professora-escritora. Faz muito tempo que esse desejo de criança acabou se diluindo com o tempo e eu fui esquecendo que um dia poderia ter pensado em entrar em uma sala de aula para ousar ensinar alguma coisa a alguém. Cresci, e quis ser jornalista. Queria escrever, queria falar. Eu ainda quero escrever e continuo querendo falar. Muito.
O tempo tem um passo apressado e leva consigo um tanto de sonhos que já foram nossos um dia. Ele passou, eu perdi o apetite, e ser professora parou de fazer sentido, apesar de ter continuado curiosa, aprendiz e comunicante. Ainda assim, eu não sentia que pudesse existir em mim a delicadeza do saber para passar qualquer conhecimento adiante. Me pergunto se eu poderei levar poesia para o chão da escola. Poesia mesmo, o sentir, na essência da palavra. A invenção, o fazer poético, aquilo que nasce do ordinário, dos pequenos detalhes, tão imensos quanto os dias que passam despercebidos. “Por que então você inventou de entrar neste curso?”, você deve estar se perguntando. “É que eu gosto de literatura”, eu te responderia algumas vinte e quatro horas atrás. E eu realmente acreditei e afirmei isso durante muitos semestres. Pode parecer esquisito, mas eu só queria viver da literatura e escrita, sem nem definir exatamente o que isso queria dizer.
E então entrei no período de estágio (eu sabia que iria vivenciar a sala de aula ainda no curso, é claro) e passei a frequentar esta escola onde o menininho me perguntou sobre a regra dos porquês. Eu não saberia te explicar o quê, mas alguma coisa mudou em mim, desde a primeira vez que, andando apressada pelo corredor em direção à sala dos professores, eu cumprimentei alguns alunos com um “bom dia” e eles responderam com um gentil e sonoro “bom dia, professora”. Estranhei, mas segui. Foi ali que o espanto começou a me invadir. Sim, alguma coisa mudou mesmo em mim naquele dia e eu só me dei conta mais tarde, voltando para casa, reverberando aquelas palavras. “Professora, professora, professora” Que bonito! Lembrei de um poema de Manoel de Barros que diz “no descomeço era o verbo/ só depois é que veio o delírio do verbo/ o delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: eu escuto a cor dos passarinhos/ a criança não sabe que o verbo escutar não funciona/ para cor, mas para som/ então se a criança muda a função de um verbo, ele/ delira/ e pois/ em poesia que é voz de poeta que é a voz de fazer/ nascimentos/ o verbo tem que pegar delírio”.
Eu prefiro morar nos detalhes, no sutil, nas coisas que eu sinto mais do que vejo. É possível que eu consiga transmitir qualquer coisa parecida para crianças em seu estado bruto de formação, enquanto estão à espera da lapidação do conhecimento? Como eu terei capacidade de filtrar a arrogância, a estupidez, as invenções do mundo materialista e concreto demais, me preencher de subjetividade e me entregar inteiramente a essa partilha do saber? Rubem Alves diz que a tarefa do professor é a mesma da cozinha: antes de dar a faca e queijo ao aluno, provocar a fome… Se ele tiver fome, mesmo que não haja queijo, ele acabará por fazer uma maquineta de roubar queijos. E agora, depois de alguns pequenos momentos ouvindo as risadas, observando as brincadeiras, escutando os professores e percebendo no olhar daquelas crianças toda a vida que elas têm diante de si, eu resido em Grande sertão: veredas, quando Riobaldo diz que “o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior”. Eu quero escrever muitos livros, contar inúmeras histórias, quero escrever poesia até ficar velhinha, mas, sim, eu quero ser professora também.
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